Entrevista com E.L.
James, autora do livro mais vendido no mundo no momento: “Experimentar coisas
diferentes [no sexo] com o parceiro pode ser um bocado divertido”
O sadomasoquismo é uma fantasia feminina?
Creio que é uma fantasia que as mulheres não sabem
ter até deparar com ela. Por razões óbvias, trata-se de algo muito subterrâneo,
um tabu. Portanto, a maioria das mulheres não conhece os princípios básicos do
sadomasoquismo — e essa novidade, em Cinquenta Tons, acabou se revelando muito
atraente para as leitoras.
Mas as objeções que os críticos de Cinquenta Tons
fazem à dominação sexual que Christian Grey impõe a Ana Steele são na maioria
de caráter feminista — o tabu, hoje, é a ideia de uma mulher se submeter a um
homem, não?
As mulheres não querem e não devem ser submissas,
mas estamos falando aqui do que acontece no quarto, a portas fechadas. É bem
sabido que a sexualidade ignora regras, e experimentar coisas diferentes com o
parceiro pode ser um bocado divertido. Não significa que a submissão vai
continuar fora do quarto, ora.
Fico ofendida quando alguém diz que estou
contribuindo para um retrocesso da condição feminina. Que bobagem! O que
Cinquenta Tons fez, na verdade, foi encorajar as mulheres a voltar a falar
sobre sexo — e essa é a razão pela qual a trilogia, antes de ser encampada pelo
mercado editorial, foi um fenômeno viral na internet. Isso não é retrocesso. É
avanço.
Existe muita ficção picante feita para mulheres.
Por que sua trilogia, especificamente, se tornou um fenômeno?
A maior parte dessa ficção é produzida não sob
impulso criativo, mas como um plano de marketing: vamos atender às demandas
desse segmento demográfico com um produto talhado para ele. Mas nem que eu
quisesse eu seria capaz de conceber um livro como estratégia de marketing. Sou
uma diletante que começou a escrever sobre dois personagens que lhe vieram à
cabeça e que foi sendo levada pela história deles.
Minha trilogia pode ter defeitos, mas a falta de
autenticidade não é um deles. O meu interesse por Christian e Ana é genuíno e,
nos termos do mercado editorial, inocente.
O que a levou a trocar sua carreira como gerente de
produção em TV pela escrita?
Uma coincidência. Eu estava muito infeliz no último
emprego — e, no mesmo momento, vi por acaso o primeiro filme da série
Crepúsculo. Adorei. Pedi então ao meu marido que me desse o livro como presente
de Natal. Ele me deu a série toda, e eu a li inteirinha, de cabo a rabo, em
cinco dias. Antes do Ano-Novo já tinha terminado — e só não a recomecei do
início imediatamente porque me sentei ao computador e comecei a escrever. Foi
como se alguém tivesse acionado um interruptor em mim.>
No princípio, escrevia para me consolar da
insatisfação no trabalho. Mas a coisa foi ganhando vulto. Escrevi um romance
entre janeiro e abril, e mais outro nos meses seguintes. Nenhum dos dois,
aliás, viu a luz do dia até hoje: eu teria de mexer muito neles até deixá-los
em condições mínimas de publicação.
O que a seduziu em Crepúsculo?
O fato de ser um romance tão assumido e tão
desavergonhado no seu romantismo — feito sem ironia, sem tentar parecer mais do
que é. E achei-o também muito erótico, embora seja tão casto.
Como essa brincadeira levou a Cinquenta Tons?
Descobri a fan fiction — sites em que fãs de
determinado livro escrevem seus próprios contos ou livros tendo o original como
inspiração. Achei que poderia ser um exercício divertido, e das minhas
incursões nele me veio a ideia do que viria a ser Cinquenta Tons.
Mas era estritamente um passatempo. Nunca, nem nos
meus devaneios mais delirantes, imaginei que a trilogia se tornaria o que se
tornou. Mesmo quando o livro começou a fazer sucesso na internet, meu sonho se
limitava a ver o livro exposto na vitrine de uma livraria — um único exemplar
que fosse. E esse parecia então um sonho distante: Cinquenta Tons foi publicado
originalmente por uma pequena editora australiana, em forma de e-book ou de
edição impressa sob encomenda, que saía caríssimo para o freguês.
Os dois primeiros romances que a senhora escreveu,
aqueles que nunca viram a luz do dia, têm algo em comum com Cinquenta Tons?
O primeiro também é um romance erótico, e o segundo
tem elementos sobrenaturais. Embora sejam enredos completamente diferentes do
de Cinquenta Tons, são ambos histórias de amor adultas. Isso é o que me
interessa, histórias de amor — e o fato é que, quando as pessoas se apaixonam e
começam uma relação, elas fazem sexo. Muito sexo, se não me falha a memória.
A senhora nasceu e morou a vida toda na Inglaterra.
Por que então Cinquenta Tons se passa nos Estados Unidos, com personagens
americanos?
Porque ele nasceu de um exercício de fan fiction de
Crepúsculo, e eu não queria mudar o cenário geral nem a idade aproximada dos
personagens. É claro que escrever em “americano” não foi fácil: faltam-me as
referências culturais, o conhecimento das expressões idiomáticas do dia a dia —
coisas que só conheço de filmes e seriados. É bem possível que eu tenha
cometido escorregões, mas até agora nenhum leitor americano reclamou.
Talvez porque eles estejam mais preocupados com
outros aspectos do livro?
O sexo, claro. Tenho estranhado um pouco a reação
da imprensa e do público americanos: às vezes eles falam de Cinquenta Tons como
se a trilogia fosse escandalosamente pornográfica. Ora, o sexo, inclusive o
sexo descrito em termos gráficos, é frequente na ficção romântica.
Eu mesma, nos meus 30 anos, quando tinha de andar
horas de metrô todo dia, adorava passar o tempo lendo autores americanos cujos
livros pingavam sexo. Eu dobrava o livro no meio, para a capa e a contracapa
ficarem encostadas e ninguém perceber com o que é que eu estava tão entretida.
Acho que o que chama atenção em Cinquenta Tons é o
sadomasoquismo. Mas a minha versão dele é ligeiríssima se comparada com a coisa
real.
A senhora recebe muita correspondência de fãs?
Dezenas de e-mails todos os dias. Eles vão desde
congratulações até comentários sobre como a trilogia apimentou a vida sexual da
leitora. E, em alguns casos, recebo mensagens de leitores e leitoras que, assim
como Christian, sofreram abuso sexual na infância.
Algumas dessas mensagens são de levar às lágrimas.
Então, por mais que se comente o sexo explícito do livro, acho que há também
outras razões que fazem os leitores envolver-se com ele.
Qual a sua opinião sobre o termo “mommy porn”, que
entrou em circulação por causa de Cinquenta Tons?
A mim parece que é uma dessas expressões que
jornalistas adoram criar para categorizar coisas novas. Cinquenta Tons trata de
uma relação consensual entre dois adultos. Não me incomoda que apliquem a
palavra “porn” ao livro, portanto, porque ela perdeu o sentido de designação da
pornografia de fato, no seu cunho explorativo e abjeto.
Hoje em dia tudo é “porn”: revistas de arquitetura
e decoração são “property porn”, programas de culinária na televisão são “food
porn”. Qual a importância de um “porn” a mais ou a menos?
Vir de outra profissão e não ter sido treinada como
escritora atrapalhou ou deu à senhora mais liberdade para desprezar as
convenções literárias que não lhe interessavam?
Ajudou muito mais do que atrapalhou. Eu tinha uma
boa carreira e poderia ter continuado nela até o fim da vida. Escrevia para mim
mesma e, portanto, fazia-o livre de angústia e de preocupações. Acho
sinceramente que esse prazer na escrita transpira nas páginas dos livros e
responde ao menos em parte pelo sucesso deles. O difícil, agora, é compreender
essa criatura que a minha vida se tornou.
A senhora já se deu conta de que não há caminho de
volta?
Não, não completamente. Até porque haverá: um dia
essa comoção vai arrefecer. Por isso me orgulho um tantinho de poder afirmar
que sou a mesma pessoa de antes de Cinquenta Tons. Não mudei, e sei que essa
integridade me será útil no futuro.
Mas a trilogia a deixou rica, não?
Tento não pensar nisso. Aliás, nem preciso tentar:
outro dia fiquei presa no metrô, por causa de um problema na linha, e os amigos
com quem eu estava indo me encontrar perguntaram: “Mas por que você não tomou
um táxi?”.
Não tomei porque nunca teria tomado, ora. Estava
bem no metrô, vez por outra ele atrasa, e é assim que as coisas são. Não
pretendo sair torrando dinheiro por aí. A bem da verdade, meu marido e eu
fazemos o possível para esquecer que ele está lá, no banco.
Compramos um carro novo e tiramos longas férias em
família, nós dois e nossos meninos, de 17 e 15 anos. Não há mais nada em que eu
sinta necessidade de gastar neste momento. Depois, veremos.
A senhora saiu, da noite para o dia, de uma vida
normal para uma roda-viva de viagens, contratos, sessões de autógrafos e
entrevistas. Tem sido difícil lidar com a celebridade súbita?
Aqui na Inglaterra ninguém me reconhece, ou, se
reconhece, não demonstra, o que ajuda a manter a aparência de normalidade da
vida. As sessões de autógrafos são uma diversão: adoro conhecer as leitoras, e
não me conformo com as intimidades que elas me contam. As entrevistas, tudo bem
— exceto as de TV. Odeio com todas as minhas forças aparecer na TV.
Passei a vida do outro lado da câmera, e me sinto
até meio mal, fisicamente, depois. Suponho que tenha algo a ver com vaidade: se
eu fosse jovenzinha, magra e linda, talvez até gostasse. Mas acho que, na maior
parte das vezes, essa aversão vem de essa ser uma situação fora do meu
controle: não sei como vou aparecer no vídeo, como o material vai ser editado —
sabe como é, de alguém Christian Grey tinha de herdar essa obsessão controladora.
Essa, eu diria, é a parte mais difícil da
celebridade súbita. Sempre fui uma pessoa organizada, tanto que fiz da
capacidade de organização uma profissão na TV. Hoje, quando estou a trabalho,
há uma multidão encarregada de “cuidar” de mim: é para lá que a senhora vai,
este é o hotel, aqui está o carro, a tal hora viremos buscá-la ou lhe dar de
comer. Deve haver quem goste, mas eu acabo me sentindo uma incapaz.
Seus filhos demonstraram algum interesse na leitura
de Cinquenta Tons?
Não, não, não. Meus meninos não leem nada, de jeito
nenhum. Com a exceção de ameaçá-los com uma arma, já tentamos de tudo, mas
parece que, para eles, não ler é uma questão de honra.
Nesse caso em particular, acaba sendo um alívio.
Não quero nem imaginar meus garotos lendo Cinquenta Tons. Nem eles, claro:
mamãe e sexo são duas ideias que não vão bem juntas.
Eles sabem por alto do que se trata. Sabem que tem
um lado salaz, que é gráfico, que está fazendo sucesso — e têm orgulho desse
sucesso, por mim. Mas dispensam maiores detalhes.
Outro dia, aliás, uma leitora de apenas 15 anos
veio falar comigo. Tive vontade de dar um pito nela: “Sua mãe sabe que você
está lendo isto aqui?”.
Fonte | Equipe 50 Shades of Grey Brasil (Finilla)
Revista Veja
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